quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

"A sociedade tornou-se um laboratório sem nenhum responsável pelos resultados do experimento"



Além de sociólogo, Beck é filósofo, psicólogo e cientista político pela Universidade de Munique. A sociedade do risco à qual se refere o alemão Ulrich Beck diz respeito às incertezas fabricadas. “Essas ‘verdadeiras’ incertezas, reforçadas por rápidas inovações tecnológicas e respostas sociais aceleradas, estão criando uma nova paisagem de risco global.”

O que é “sociedade de risco” e como surgiu?

“Sociedade de risco” significa que vivemos em um mundo fora de controle. Não há nada certo além da incerteza. Mas vamos aos detalhes. O termo “risco” tem dois sentidos radicalmente diferentes. Aplica-se, em primeiro lugar, a um mundo governado inteiramente pelas leis da probabilidade, onde tudo é mensurável e calculável. Esta palavra também é comumente usada para referir-se a incertezas não quantificáveis, a “riscos que não podem ser mensurados”. Quando falo de “sociedade de risco”, é nesse último sentido de incertezas fabricadas.

Essas “verdadeiras” incertezas, reforçadas por rápidas inovações tecnológicas e respostas sociais aceleradas, estão criando uma nova paisagem de risco global. Em todas essas novas tecnologias incertas de risco, estamos separados da possibilidade e dos resultados por um oceano de ignorância[1] (not knowing).

O senhor pode dar um exemplo?

Há alguns anos, o Congresso dos EUA deu a uma comissão científica a tarefa de desenvolver uma linguagem simbólica que tornaria claro o perigo que um local de dejetos atômicos nos EUA implicaria. O problema a ser resolvido era o seguinte: Como os conceitos e símbolos poderiam ser constituídos de forma a comunicar (algo) àqueles que vivessem daqui a dez mil anos. A comissão era formada por físicos, antropólogos, lingüistas, pesquisadores do cérebro, psicólogos, biólogos moleculares, gerontólogos, artistas etc. Primeiro de tudo, eles deveriam esclarecer uma questão simples: os EUA existiriam daqui a dez mil anos? A resposta foi, claro, simples: “EUA para sempre!”. No entanto, a chave do problema – como é possível hoje começar uma conversa para dez mil anos no futuro – eventualmente provou ser insolúvel. A comissão buscou por exemplos dos mais antigos símbolos da humanidade, estudou as ruínas de Stonehenge[2] (1500 a. C.) e as pirâmides, pesquisou a recepção de Homero[3] e da bíblia e ouviu explicações sobre o ciclo de vida dos documentos. Isso, no entanto, alcançou apenas algumas centenas de anos passados, não dez mil. Na velocidade de seu desenvolvimento tecnológico, o mundo moderno aumenta a diferença global entre a linguagem de riscos quantificáveis no qual pensamos e agimos, e o mundo de insegurança quantificável que igualmente criamos. Com nossas decisões passadas sobre energia atômica e nossas decisões presentes sobre o uso de tecnologia genética, genética humana, nanotecnologia e ciência informática, desencadeamos conseqüências imprevisíveis, incontroláveis e certamente até incomunicáveis que ameaçam a vida na Terra.

O que, portanto, é realmente novo a respeito da sociedade de risco?

Risco é um conceito moderno. Pressupõe decisões que tentam fazer das conseqüências imprevisíveis das decisões civilizacionais decisões previsíveis e controláveis. Se alguém, por exemplo, diz que o risco de câncer em fumantes está em um certo nível, e o risco de catástrofe em uma usina nuclear está em certo nível, isso implica que riscos são conseqüências negativas permitidas por decisões que parecem calculáveis, assim como a probabilidade de doença ou acidente, e ainda assim não são catástrofes naturais.

A novidade da sociedade de risco repousa no fato de que nossas decisões civilizacionais envolvem conseqüências e perigos globais, e isso contradiz radicalmente a linguagem institucionalizada do controle – e mesmo a promessa de controle – que é irradiada ao público global na eventualidade de catástrofe (como em Chernobyl e também nos ataques terroristas[4] - terror attacks - sobre Nova Iorque e Washington). Isso constitui precisamente a “explosividade” política da sociedade de risco. Esta “explosividade” tem seu centro na esfera pública da sociedade de massas midiatizada, na política, na burocracia, na economia, embora não seja necessariamente contíguo a um evento específico ao qual esteja conectada.

A “explosividade” política não pode ser descrita e mensurada nem na linguagem do risco, nem em fórmulas científicas. Nela “explode” - se me permite a metáfora – a responsabilidade, reivindica racionalidade e legitimidade pelo contato com a realidade. O outro lado da presença admitida do perigo é a falência das instituições cuja autoridade provém da maestria assumida de tal perigo. Desse modo, o “nascimento social” de um perigo global é tanto um improvável quanto um dramático, mesmo traumático, fim do mundo. Na experiência de choque irradiado pela mídia massificada, torna-se reconhecível que – para citar Goya[5] – a dormência da razão cria monstros.

Em seu livro Sociedade de Risco, o senhor argumenta que “a força motriz na sociedade de classes pode ser resumida em uma frase: Tenho fome! O movimento posto em marcha pela sociedade de risco também é expresso pelo indicativo: Tenho medo! A comunalidade da ansiedade toma o lugar da comunalidade da necessidade.”. Poderia explicar melhor essa afirmação?

Não sabemos se vivemos em um mundo algo mais arriscado que aquele das gerações passadas. Não é a quantidade de risco, mas a qualidade do controle ou – para ser mais preciso – a sabida impossibilidade de controle das conseqüências das decisões civilizacionais que faz a diferença histórica. Por isso, eu uso o termo “incertezas fabricadas”. A expectativa institucionalizada de controle, mesmo as idéias-chave de “certeza” e “racionalidade” estão em colapso. Não são as mudanças climáticas, os desastres ecológicos, ameaças de terrorismo internacional, o mal da vaca louca etc. que criam a originalidade da sociedade de risco, mas a crescente percepção de que vivemos em um mundo interconectado que está se descontrolando.

Os desafios dos riscos globais conceituais e prescritivos oriundos da primeira modernidade do século XIX e início do século XX, são discutidos no início do século XXI. Os riscos com os quais nos confrontamos não podem ser delimitados espacialmente, temporalmente, ou socialmente; eles abrangem estados-nação, alianças militares, e todas as classes sociais, e, por sua natureza, apresentam novos tipos de desafios às instituições designadas para seu controle.

As regras estabelecidas de atribuição e responsabilidade – causalidade, culpa e justiça – quebraram-se. Isso significa que sua cuidadosa aplicação à pesquisa e jurisdição tem o efeito contrário: os perigos aumentaram e sua “anonimatização” (anonymization) é legitimada. Então, a principal diferença entre a cultura pré-moderna do medo e a cultura do medo da segunda modernidade é: na pré-modernidade, os perigos e medos podem ser atribuídos a deuses ou Deus ou à natureza, e a promessa de modernidade deve superar essas ameaças com mais modernização e mais progresso – mais ciência, mais economia de mercado, melhores e novas tecnologias, padrões de segurança etc. Na era do risco, as ameaças com as quais nos confrontamos não podem ser atribuídas a Deus ou à natureza, mas à própria “modernização” e ao próprio “progresso”. Assim, a cultura do medo vem do fato paradoxal de que as instituições feitas para controlar produzem incontrolabilidade.

O que acontece à nossa capacidade de buscar justiça na sociedade de risco?

Não há uma resposta fácil a esta pergunta. Dê uma olhada, por exemplo, em uma das mais famosas filosofias e teorias morais da justiça de nosso tempo, criada por John Rawls[6]. Ele conceitualiza a justiça em um marco referencial construído sobre duas premissas obsoletas: a primeira é o “nacionalismo metodológico”, que significa que a questão da justiça é percebida em categorias do estado-nação; e a segunda é que ele concentra sua teoria na distribuição de “bens” e negligencia a distribuição dos “males” e “riscos”, do que deriva, como eu argumento em meu livro, uma lógica bem diferente.

Portanto, a “gramática” social e política em que vivemos, pensamos e sobre a qual agimos está se tornando historicamente obsoleta, não obstante, continua a governar nosso pensamento e nossas ações. Pegue a ameaça terrorista, por exemplo. A violência de 11 de setembro de 2001 se mostra como a falência de conceitos tradicionais baseados em estados de “guerra” e “paz”, “amigo” e “inimigo”, “guerra” e “crime” para então se apreender, analisar e propor abordagens às novas realidades morais, sociais e políticas. Sua questão, como redefinir a justiça numa sociedade de risco, nem sequer foi levantada.

O que significa “poder” em uma sociedade de risco?

Em conflitos de risco, a questão central do poder é de definição. É a questão de quem, com que recursos legais e intelectuais, passa a decidir o que conta como “risco”, o que conta como “causa”, e o que conta como “preço”[7]. A questão de determinar quem é responsável, e quem tem que carregar o fardo de pagar pelos danos, foi transformada em uma batalha sobre as regras de evidência e as leis de responsabilidade. E a razão para isso é que, no fundo, o verdadeiro duelo se dá entre a idéia de que alguém é responsável e a idéia de que ninguém é responsável.

É esta razão pela qual o senhor fala sobre “irresponsabilidade organizada” como uma característica da sociedade de risco?

Sim. Políticos dizem que não estão no comando, que eles no máximo regulam a estrutura para o mercado. Especialistas científicos dizem que meramente criam oportunidades tecnológicas: eles não decidem como elas serão implementadas. Gente de negócios diz que está simplesmente respondendo a uma demanda dos consumidores. A sociedade tornou-se um laboratório sem nenhum responsável pelos resultados do experimento.

Notas:

[1] No original, a palavra seria traduzível literalmente por “não saber”. (Nota do tradutor)

[2] Stonehenge: monumento megalítico da Idade do Bronze, localizado próximo a Amesbury, no condado de Wiltshire, a cerca de 13 km (8 milhas) a noroeste de Salisbury, na Inglaterra. Círculo de pedras provavelmente construído como templo-calendário do ano, impressiona pelo tamanho dos blocos movimentados para a sua edificação. Uma antiga lenda local atribui à magia do mago Merlim o seu deslocamento.

[3] Homero: primeiro grande poeta grego, que teria vivido há cerca de 3500 anos e consagrado o gênero épico com as suas grandiosas obras: A Ilíada e a Odisséia. Nada se sabe seguramente da sua existência; mas a crítica moderna inclina-se a crer que ele terá vivido no século VIII a. C., embora sem poder indicar onde nasceu nem confirmar a sua pobreza, cegueira e afã de viajante, caracteres que tradicionalmente lhe têm sido atribuídos.

[4] No original, a palavra é “terror”, porém o sentido pode ser usado tanto para “ataques terríveis” quanto para “ataques terroristas”. (Nota do tradutor)

[5] Franciscos José Goya y Lucientes (1746-1828): pintor espanhol cuja obra marca a transição do neoclassicismo ao romantismo.

[6] John Rawls (1921-2002): filósofo, foi professor de Filosofia Política na Universidade de Harvard. É autor de Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997; Liberalismo Político. São Paulo: Ática, 2000; e O Direito dos Povos. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2001. A IHU On-Line número 45, de 2 de dezembro de 2002, dedicou sua matéria de capa a John Rawls, sob o título John Rawls: o filósofo da justiça. Confira, ainda, o 1º dos Cadernos IHU Idéias, intitulado A teoria da justiça de John Rawls, de autoria do Prof. Dr. José Nedel.

[7] Do original, “cost”. Aqui “preço” está sendo usado como em “preço que se paga por ...”. (N. do T.)

Fonte: http://www.galizalivre.org/